Um lugar de tentativas...

sábado, 24 de julho de 2010

Retrato materno: uma pequena crônica

Outro dia na feira eu observava uma mulher e sua criança. O corpo de uma mãe é um aparelho multifuncional. Aparelho que gera e nutre a vida, incubadora natural. Essa mulher - que o reflexo materno fez máquina- se move elegantemente como um polvo, com braços mecânicos de ninar e de prover. Os dedos são firmes, bem delineados. Algumas vezes são pintados, de vermelho ou rosa. Quando movidos lateralmente, dizem não. Quando em riste, apontam culpas (ou caminhos). No momento de ralhar, acompanha-lhes outro instrumento: a boca. Aquele dia na feira, a boca da mãe engoliu o orgulho e a vergonha, e na agudeza de sua voz feminina berrou pelo bem maior: Devolve essa laranja pra onde você pegou menino!! Roubar é pecado. Deus não perdoa nunca! A voz da mãe é a própria voz de Deus. Seu descumprimento implica em consequências cósmicas. E além da boca, há também o grande olho, onisciente e onipresente, treinado como um cão de caça, na identificação de perigo eminente ou de traquinagens.
Forte em músculos, orelhas, pés e ventre, a mãe é um instrumento infalível. É uma criatura mitológica trabalhando pela defesa da prole. A infância é caixa de pandora, de onde tudo pode emergir. Assim a máquina-mãe controla o que sai da caixa, e o que nela entra, na esperança de que o pequeno Hércules (produto de seu ventre) venha a cumprir sina honrosa.
Lá na feira da Alameda dos Buritis, o menino acabou por devolver a laranja para o monte, depois de abrir um berreiro sem precedentes. Aprendera a lição. A mãe arrastou-o pelos bracinhos franzinos por meia-dúzia de bancas, como a um boneco de pano. Transcrita no rosto de ferro, ali estava: a expressão de missão cumprida.

sábado, 17 de julho de 2010

Vocação



Encheu o copo em dois dedos, deu um gole rápido, e pousou-o no colo, vazio. Na sala reverberaram o tilintar do copo e o medo do silêncio. Mas não era fraco. Filho de mãe costureira, sem nunca ter conhecido pai, parecia já ter nascido pronto pra vida. Quando de muito menino, os moleques da rua danavam a mexer com ele, dizendo que a mãe era mulher da vida. Sendo o mais alto do bando, batia neles todos, e depois iam tomar banho de rio, que rancor nessa idade é de memória curta. Triste também não era. As crianças lhe gostavam muito. Seguiam-lhe até o cupinzeiro, no escuro da noite, para ouvir estórias de fantasmas. Gostava de manter o suspense até o final, e na hora da aparição da assombração tinha sempre um truque, para assustar a meninada, que saia correndo feito boi desgarrado. A última vez que estiveram lá, pagou um menino para acender uma luz branca lá no meio do pasto. A platéia tanto se assustou que nunca mais voltaram lá.
Ao seu lado, uma caixa. Abre-a com a decência ritualística com que se fala com os mortos. Cartas de Maria Lúcia (Deus sabe que bocas beija agora), o terço da mãe, as figurinhas da copa de 70, uma nota velha de dinheiro e dois botões. A caixa tinha emergido num canto da casa de forma quase esotérica. Vinte e cinco anos em uma casa e tão pouco se acumula, tão pouco vale lembrar. No fundo da caixa, apanhou uma foto antiga. Ele e o palhaço Rodrigues sorriem como quem guarda um segredo. Naquele mês a cidade havia recebido a visita do curso itinerante de artes circenses. Estava convencido dali para frente de que seria um palhaço, e dos melhores. As crianças, que antes se assustavam com os contos macabros, agora davam risadas dos números aparvalhados de um palhaço principiante. Sempre fora de boa retórica, e aprendera com a mãe o bom humor. Faltava só um nariz vermelho, que a tia prometera trazer quando fosse a cidade próxima, em duas semanas. De nada adiantou o presente, pois quando o acessório chegou, já estava envolvido em novas atividades. Decidira que ser mágico era bem mais interessante, e desde então se dedicava a leitura de revistas sobre o assunto, ganhadas do avô. Começou com truques pequenos, a maioria incluindo cartas. Entretanto, no mês seguinte já se metia a tirar moedas de trás de orelhas, coelhos de chapéus e dizem que fez até desaparecer Toninho (que por pura coincidência era o mesmo envolvido na aparição fantasmagórica do cupinzeiro). Mas o truque mais bonito,
que até hoje Pirinópolis se lembra, ainda estava por vir. Numa manhã chamou todos os colegas para a pracinha, e apareceu fantasiado dos pés a cabeça, como um Merlin do cerrado. Anunciou que tinha uma vara de pescar e uma bacia com água. Pediu a todos que checassem a vara e a bacia, a procura de truques ou possíveis segredos de mágico. Depois que todos aprovaram o instrumento, colocou a bacia com água a uma distância de 10 metros e dentro dela lançou a vara. Minutos se passaram, e quando um ou outro disperso já se preparava para partir, puxou-a com força. Os olhares atônitos das crianças fitavam o impossível: um peixe enorme (do tipo que nem se via naquela região) estava na ponta da vara. Assim que entenderam a maestria do truque, puseram-se a aplaudí-lo como a um Houdini, Dias depois, Dona Aurélia decidiu que o filho não se meteria mais com bruxarias, e jogou fora todos os livros de mágica. Alguns anos depois, a mãe foi ter com a mágica do além-mundo, e ele mudou-se para Goiânia. Tornou-se advogado, casou-se com Maria Lúcia e morou vinte e cinco anos na casa do Centro. Maria Lúcia era dez anos mais jovem do que ele, e deixou-o há outros dez.
O homem olha agora para a foto do menino. É tomado por um sentimento repentino de felicidade. Lembra-se satisfeito, que por muitos anos perguntavam-lhe como tinha executado o truque, e ele respondia apenas: “O peixe morre pela boca.”

quarta-feira, 7 de julho de 2010

Mini-estória musical sem final feliz

Uma vez quando eu tinha de 7 pra 8, o menino da rua de cima apareceu cantando de galo. Veio nos mostrar um brinquedo que tinha criado usando dois gravetos e um pedaço de plástico entre eles, com furos estratégicos. Toda manhã ficava empolado no muro tentando tirar sons da engenhoca, que vez ou outra até que passavam perto de trechos de músicas populares. Sem muito sucesso, corria pra dentro de casa, e voltava mais tarde com um plástico mais grosso, ou gravetos diferentes, ou uma nova sequência de furos. Só o que não mudava era o resultado. E os vizinhos, que eram insensíveis e nada entendiam de música de menino, começaram a reclamar. Um dia, o mais impaciente deles, seu Tonho, cansou das invencionices barulhentas do Tetéu e foi logo chegando no grito. Arrancou o brinquedo da mão dele e jogou longe, para além do lote baldio. O Tetéu até chorou. Ficou dias sem sair pra brincar na rua. Mas isso foi coisa pouca. Meses depois, para sua tristeza, descobriu que a gaita já havia sido inventada.

terça-feira, 6 de julho de 2010

O belo e o feio



Eu queria escrever um poema de coisas bonitas:
Sentir amor, dois cachorros ao sol, um pé de jabuticaba.
O susto de conhecer Celso...
Vô Geraldo de terno novo pra receber folia de reis...
Os meninos pintando a rua,
Em dia de jogo do Brasil.
E mais tarde as pipas todas verde-amarelas
Cortando o céu azul...

Versos pra Bosi nem Campos fazer de criticar.
Sólido como uma rocha do sertão,
Belo, essencial, feminino...
De uma terra longe
De uma infância longe
Como gostam as gentes.

Mas pro meu desgosto,
Não tive avô Geraldo.
Celso não conheci.
Folia de reis eu vi na tevê
Jabuticaba só em época...


Eu nasci no sujo da metrópole,
O concreto sob o peso das pálpebras
A infância eu perdi quando perdi deus.
Ai Itabira, dos sonhos de Drummond!
Tivesse eu as ruas de Goiás, seria Cora.
Ser urbano é entender as coisas feias.