Um lugar de tentativas...

quinta-feira, 11 de março de 2010

O nascimento de Clarice Lispector


E assim como é verdade que há certas flores de talo esguio e brio amarelido que se orientam pelo sol, eu posso afirmar que a menina Clarice se orientava por um ponteiro interior que bate `a seu tempo e modo. Figura de uma borbulheza mansa, modesta das criatividades, mas esperta e danosa pra certas coisas da vida. Econômica das palavras, dizem que nem felicidade demais ele gastou, que era pra não parecer pedante. Mas que foi feliz foi. O senhor caro leitor pode desconfiar de mim, narradora envolvida até as canelas nessa estória, mas como poeta é fingidor, vou fingir a maior imparcialiade possível e os senhores que tratem de comprar a Clarice Lispector que agora vos revelo, em vida e páginas.
Como sou eu a guardiã da caixa de Pandora, é preciso explicar que só se contará os eventos que coloriram a vida de nosso personagem a partir dos 19 anos. A escolha é arbitrária. Picuinha de narrador. O que foi de Clarice antes dos 19 que fique apenas na curiosidade do interlocutor. Nossa estória acontece no dia 09 de janeiro do ano mencionado. A menina levanta-se de um só pulo, as mãos atiradas às têmporas e um sentimento estranho, de quem bebeu água em copo de remédio. Aos passos de um curumim, se projeta verticalmente, tentando reverter o coma induzido que chamamos de sono, e no meio da bagunça embaçada dos olhos recém-abertos, vai cambaleante até a cozinha. Os sintomas que a embalaram até a jarra de água, eram-lhe estranhos. Além da intensa dor de cabeça, um inchaço da língua se principiava. O sentimento estranho, e me arrisco a descrevê-lo como o próprio teria, era como se precisasse pensar e dizer. A boca queria dizer coisas. E foi num soluço que começou a parte mais fantástica de nossa estória. O inchaço da língua era o acúmulo das coisas mais esquisistas que o senhor leitor possa imaginar. Eram palavras e frases que dobravam a língua da pobre de tamanho. E eram idéias que forçavam seu caminho para fora da cabeça de Clarice. Sem controle sobre seu próprio corpo, a boca do moça foi logo dizendo, e em língua estrangeira: The greater sense is the writing sense. The ability to sense things not as they are, but as they could have been, is a sense that only the writer has. Enquanto a boca falava sozinha, os olhos de Clarice assustados acompanham o fabuloso evento. Poderíamos pensar que nossa personagem teria se desesperado diante de cena tão Carrolliana, mas vou logo lhes avisando que vosso narrador faz muito gosto do tal realismo fantástico e mantém aqui em Clarice mais um interesse científico do que um desespero auto-sobrevivente. E é posição que lhe cabe, moça que nem na hora da morte houve de ter impulsos. Mas a morte é coisa que não lhes revelo nessa estória. Voltemos pois ao evento da boca falante. Como já não podia expressar-se verbalmente, tendo tido o território invadido como os poloneses em 1937, tentou elaborar um pensamento e comunicar-se com a boca. Pensou um dos pensamentos que tentavam escapar: I like Clouds. Clouds are beautiful. Baudelaire liked clouds too. E dois segundos depois a boca lhe respondeu: As nuvens movendo-se lentamente, injetando realidade pasmacenta e prova geográfica, naqueles que ainda duvidem que moramos debaixo do céu. Clarice assustou-se com a insanidade com que a boca lhe respondia, mas até que achou bonito, e lançou um segundo pensamento: Eu temo aquilo que me atinge no estômago. E a boca logo se prontificou: “Como pode a poesia não tolerar o choque, o embate. O golpe que enoja e o golpe que amedronta são filhos da mesma intensidade que maravilha.” Por alguns minutos o moça Clarice suspeitou que talvez tivesse uma outra voz morando dentro de si, uma que desconhecia. Mas foi em súbita iluminação que compreendeu o que a boca tentava lhe dizer.
E foi assim que naquele mesmo dia, depois do mais fabuloso diálogo de que se tem notícia, Clarice colocou-se a escrever. Escreveu e escreveu, por dias. O livro foi publicado ao final daquele mesmo ano. Se chamava "Perto do coração selvagem". Que duvide da estória quem nunca teve um verso entalado no esôfago.

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