Um lugar de tentativas...

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

A última partida


A rainha desfilou sua palidez de mortal elegância e proferiu o golpe final. O negro rei, do alto de sua coroa inerte não pediu misericórdia. Xeque-mate. E o fim justifica os meios. A tropa de peões, bispos e cavalos é cuidadosamente alinhada novamente. Na guerra e no sono alguma coisa retrocede, algo volta ao seu estado original. Meticulosamente, em madeira e nobreza, eles vão tomando seus antigos postos. Peões na linha de frente. Cavalos vizinhos de bispos. Torres sempre nas esquinas, e um rei ao centro: isca e razão de tudo. Pretos e brancos, cada um para o seu lado. Depois da batalha, eles são novamente motivo de decoração. Um bom tabuleiro de xadrez tem alma. Assim tinha sido a última partida entre dois bons amigos. Sabiam que o seria. Quando ela tocou a campainha as 5 da manhã do sábado, sugerindo uma partida de xadrez, ele emergiu de seu sono para o que parecia uma fantasia Carroliana. O chapeleiro louco viria dançar sobre seu tabuleiro e a rainha anunciaria imperativa, que lhe cortassem a cabeça. Naquela madrugada, as pupilas da moça eram de um rosa-flamingo e seus dedos frios não se articularam em cumprimento.
Há alguns meses o fim estava de pernas descobertas. Era claro para os dois a impossibilidade daquela amizade. Ela sempre teria sentimentos. Ele, sempre teria aquele par de óculos confusos, que dificultavam ver a causa a fundo. Uma amizade é impossível quando se têm tanto a dizer. Todas as boas amizades se alimentam do silêncio. “Eu ainda gosto de você”. E ali estava ela, num vestido branco de festa, pedindo uma última partida de xadrez. Afinal de contas, ele era a razão pela qual ela tinha aprendido a jogar. O anfitrião aceitou e sentaram-se a mesa de jantar. O vidro opaco das peças tilintava, desafiando o silêncio de seus ventríloquos. A dama de branco teve a vantagem. Lançou seus cavalos contra o inimigo. O coração ameaçava-lhe os pulsos por dentro do vestido. Se ao menos ela ganhasse, poderia impressioná-lo, e se despedir da amizade como o elo forte. “Pelo menos no xadrez, por deus!” pensava entre um movimento e outro. Pois naquela noite, para a surpresa da moça, as estrelas tinham se alinhado de tal forma, que ela ganhava espaço inédito contra seu opositor sentimental. Nunca ela tinha feito tão eficiente uso de tantas estratégias diferentes, e seus soldados alvos avançavam impiedosos contra os dele. Investidas diagonais, verticais e horizontais a levavam para a inevitável glória. O rapaz, ainda sonolento e surpreso com a visita noturna, lutava com as poucas peças que lhe sobravam.
Quando o relógio marcou 5:32, um coração partido planejava seu último decreto real. O rei inimigo possuía a esse momento apenas uma torre e alguns bufões. Mas foi aproximadamente as 5:36, que a sorte da dama-primeira mudou. Seu antigo amante lançou-se novamente em ofensiva, e pôs-se logo a promover cruzadas contra as peças vitais da moça. Ia o rapaz, munido apenas de uma corajosa torre. E ao fim de alguns minutos já divertia-se colocando a adversária em xeque. “Eu acho que te amei. Eu não sei...”. Longo silêncio. “Xeque-mate”, ele anunciou.

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